WALDEINSAMKEIT

(Substantivo, do alemão wald + einsamkeit): o sentimento de estar sozinho na floresta; estar em paz junto a natureza.


[PARTE 1]

Hinata! Não dê nem mais um passo! Afaste-se das árvores! Nunca, nunca, entre nessa floresta!

A primeira vez o aviso tinha vindo de seu pai em tons meio nervosos e meio preocupados. A menina certamente não sabia onde começava um e terminava outro porque tremia e começou a chorar instantaneamente enquanto seu pai vinha em sua direção como a encarnação da fúria. Ela mal tinha chegado aos arbustos de mirtilos que rodeavam a floresta, ela só queria colher algumas frutinhas, elas estavam logo ali!

Quando seu pai se aproximou o suficiente Hinata retesou o corpo achando que dali viriam algumas palmadas, mas tudo o que Hiashi fez foi tomar-lhe no colo, as mãos envolvendo-a protetoramente, sua cabeça repousando no ombro largo, o cheiro familiar de pai e carinho e lareira e tinta derrubaram ainda mais lágrimas de seus arregalados olhos brancos.

Ele marchou por todo o jardim de volta para a casa, a mão grande esfregando as costas dela para que parasse de chorar, os olhos de Hinata grudados na floresta na qual ela não podia entrar, lindamente iluminada e convidativa naquele meio de tarde de primavera.

E lá, na base dos arbustos, Hinata achou ter visto a mais curiosa raposa, inteirinha preta do focinho a calda.

Deixe a adaga, Hinata.

O segundo aviso viera de Neji anos depois. Lembrava-se de ter tentado protestar mais com ele do que jamais ousaria fazer com seu pai.

Ela caiu em algum lugar da floresta, portanto está perdida e não importa se foi logo depois dos arbustos! Não vou deixar que entre lá!

Era o verão logo depois de seu décimo terceiro aniversário e ganhara três adagas decoradas de seu tio Hizashi que estava visitando pela temporada. Estava com Neji no jardim dos fundos aprendendo a atirá-las, mas usou força demais e pontaria de menos em um de seus arremessos que fez a adaga passar direto pelo alvo, bater na cerca de madeira com um tilintar metálico e cair em algum lugar da floresta, mas que não poderia ser muito longe, ela pensou. Não deu nem um passo antes de ouvir as palavras de seu primo. Ele tinha os olhos fixados nas árvores, o tom sério como um ataque cardíaco. Se não o conhecesse melhor, diria até que Neji estava assustado.

Neji colocou a mão nas suas costas guiando-a de volta para casa surdo para quaisquer protestos, mas Hinata arriscou um último olhar para o lugar onde acreditava estar a adaga e podia jurar que tinha visto um cervo preto dos chifres até o rabo.

Por favor, parem!

A terceira vez fora sua própria voz a dar o aviso. Sakura e Ino e até mesmo Tenten, sempre tão mais sensata, tinham bebido taças a mais do que deveriam e corriam pelo jardim dos fundos com risos agudos deixando baforadas de vapor escaparem de seus lábios na noite de inverno. Havia geada sobre a grama marrom do jardim, mas nada de neve ainda. Hinata ia atrás delas segurando o vestido que antes achara tão bonito, mas que agora era apenas uma inconveniência para alcançar as tolas amigas. Era seu aniversário de dezessete anos e sua introdução formal à sociedade com uma festa em que seu pai convidara todas as pessoas adequadas e todas as famílias dos empregados da casa– imaginava que os clãs nobres estavam bastante incomodados com o fato, mas seriam devidamente esnobes para jamais admitir.

Sakura ia a passos apressados até a cerca nos limites da propriedade com Ino em seu encalço. Depois de alguns metros, contudo, Tenten parou e observou Hinata correndo até elas. A menina as alcançou quando Sakura já tinha jogado um dos pés por cima da cerca, o vestido levantado até mostrar as ligas e as meias rendadas. Ino estava ao lado dela, mas ouvira os apelos de Hinata e agora parecia incerta, encarando a floresta com outros olhos.

Sakura, por favor! É proibido para qualquer um daqui passar dos limites da floresta, e creio que isso se aplique aos visitantes! Por favor!

Lembrava-se de como Sakura estava embriagada, então ela riu de seus avisos. Deu de ombros e riu mais quando a morena insistiu, como se fosse Hinata quem estivesse se comportando tolamente, com medo de um amontoado de árvores e umidade, então tentou retirar a perna de cima da cerca como se só estivesse querendo dar um susto nas amigas com aquela tentativa de ser intrépida. Rasgou a meia ao fazer isso e arranhou a perna alva em um prego no processo. Fora obviamente superficial, mas o suficiente para acabar com a embriaguez de Sakura ao ter sua meia de seda arruinada e a rosada marchou de volta para o palacete dos Hyuuga admoestando as amigas por deixá-la se ferir quando estava ébria e de quem havia sido a brilhante ideia de deixar a festa sem agasalhos no meio do inverno! Ino foi atrás rindo dela e da situação do que o penteado de Sakura se tornara, mas Tenten ainda esperou um momento, dividida entre segui-las e aguardar Hinata que encarava a escuridão densa entre as árvores. Um calafrio e o grito de Tenten chamando-a sobressaltaram-na o suficiente para que desse as costas ao desconhecido e fosse de voltara para a festa.

Balançou a cabeça para afastar o pensamento de que acreditava ter visto pequenos olhos vermelhos, pequenos como os olhos de um corvo, encarando-a da floresta.

Pouco mais de um mês depois da festa eles começaram a ouvir os avisos sobre a revolução, sobre a morte de diversos aristocratas, vários que podiam chamar de amigos da família, outros nobres e até mesmo ricos senhores de terras, como era o caso de Hiashi. Hanabi, que estava passando o inverno com a família da mãe delas ao sul por detestar o frio nortenho, recebeu uma mensagem do pai mandando-lhe ficar lá por mais algum tempo. Hiashi queria mandar Hinata para lá também, mas tinha medo do que poderia haver nas estradas. Tinha motivos para temer mais do que bandidos e revolucionários naquelas terras.

Os insurgentes alcançaram as terras de seu tio antes e Neji chegou a casa deles em um cavalo exausto, pingando sangue na sela e pedindo perdão ao tio por não ter conseguido salvar o pai. Hiashi sentiu a perda do irmão e temeu pela vida de suas filhas e seu sobrinho. Cogitou novamente mandar Hinata para o sul com Neji como escolta uma vez que ele estivesse recuperado dos ferimentos, mas impossibilitados de chamar um médico, um curandeiro ou mesmo uma alcoviteira, o rapaz não resistiu e morreu de uma infecção um mês antes do mundo inteiro dos Hyuuga ir de vez para o inferno.

Eles atacaram as casas daquela região em uma noite fragrante de outono, quase um ano depois do grande baile para apresentação social da primogênita de Hiashi. Hinata acordou com os guinchos dos cavalos porque eles atearam fogo aos estábulos primeiro. A porta da frente, de madeira antiga, estava se mostrando difícil de arrombar, e as janelas do primeiro andar haviam sido barricadas com tábuas semanas antes prevendo justamente aquilo.

A moça pegou da gaveta da penteadeira as adagas adornadas e amarrou o cinto com as bainhas por cima da camisola sem cerimônias. Estava terminando de calçar as botas quando seu pai entrou no quarto parecendo apavorado e tirou-a de lá. A criadagem não dormia mais na casa e eles estavam reduzidos aos dois, pois onde quer que olhassem não havia mais guardas ou mercenários para contratarem como proteção.

A imensa porta da frente cedeu no instante em que Hiashi conseguiu entrar com Hinata na cozinha e bater aquela porta, mas ele sabia que o tinham avistado. Ele precisava mandar Hinata para um local seguro, sabia o que fariam com ela se a encontrassem. Seria pior, muito pior do que apenas a morte.

Vá, Hinata! Você precisa correr, precisa se salvar!

Fora a última vez que ouvira o aviso.

Vá pelos fundos, rápido! Vá por trás do estábulo, mas não vá para a floresta! Fique longe daquele lugar, mas corra o mais rápido que puder e vá para o sul, tente chegar até sua irmã!

Ele a empurrava sob protestos que ignorou. Hiashi fez uma curva e a levou até a porta escondida sob as escadas que dava para os aposentos dos empregados, abrindo-se para um pequeno porão e para fora por uma escotilha no jardim escondida sob grama falsa. Ela não queria ir e ele sabia, mas ela tinha que ir! Hiashi perdera Hikari há tanto tempo, depois aqueles bárbaros equivocados tomaram-lhe Hizashi sem que pudesse ir até ele, foi um impotente para ajudar Neji, e Hanabi estava longe, sem notícia há meses... Tinha que tentar salvar Hinata.

Vá! Fique longe da floresta!

Ele a empurrou escada acima e a escotilha se fechou a seus pés no momento em que Hinata ouviu a porta interna ser arrombada. Lágrimas começaram a cair no mesmo instante em que seu instinto de ficar ou fugir alcançou suas pernas e ela correu.

Tirou as adagas das bainhas para evitar que elas ficassem quicando contra seus quadris ao correr. Fez uma curva na esquina do casarão em direção aos estábulos. O calor das chamas a atingiu metros antes, assim como as mãos calejadas de um soldado revolucionário desgarrado. A moça imediatamente tentou se soltar empurrando-o com um punho fechado contra o peito largo, a mão direita enterrou a adaga no pescoço dele em um golpe limpo antes que ele percebesse que ela estava armada e desesperada. Ele ainda emitiu um gorgolejar grotesco no momento em que uma golfada de sangue quente cobriu Hinata e o homem começar a tombar, uma das mãos na garganta, a outra tateando-a a esmo enquanto ficava lá, ofegante, meio paralisada pelo choque, meio estonteada pela adrenalina. A voz de seu pai soou em sua cabeça como um mantra antes que seus joelhos batessem no chão, a direção em que o peso do homem a levava. Arrancou a adaga da garganta do morto deixando mais sangue escapar e bem a tempo de ver que aquele soldado desgarrado tinha amigos que a avistaram.

Hinata sabia o que tinha que fazer, era sua única opção e era tudo o que não queria.

Deu as costas aos homens que corriam, rezou para que nenhum deles tivesse arco e flechas, e correu em direção à floresta. Segurou as adagas com uma das mãos e pulou a cerca sem parar de correr. Seu vestido de dormir ficou preso nos arbustos de mirtilos, secos e duros naquela época do ano, e ela o rasgou para se libertar. Rezou para o que quer que fosse que tinha de assustador naquela floresta, para que o medo que a impedia de entrar ali, o medo que petrificava seu pai e assustava Neji, o terror daquelas árvores que ela ouvira ser sussurrado tantas e tantas vezes pelos homens e mulheres cujas terras faziam fronteira com o território, também fizesse com que seus perseguidores recuassem, mas muito metros a frente, quando arriscou um olhar para trás, Hinata viu as tochas seguindo-a por sobre a cerca e pelas árvores adentro.

Correu mais rápido. Suas pernas protestavam, não conseguia enxergar um palmo na frente dos olhos e sentia as juntas dos dedos incrivelmente rígidas por segurar as adagas com força contra o vento. O sangue daquele soldado secava e endurecia em sua pele, o ar gelado de outono a feria por dentro, mas ela ainda ouvia barulhos às suas costas, não podia parar de correr. Quanto mais de floresta haveria? Ela nunca soube quão grande ela era.

Hinata sentiu os pelos de seu corpo todo se eriçarem quando um calafrio de um medo mais primitivo, mais visceral, de algo que se aproximava pela dianteira, mas nem isso conseguiu fazê-la parar de correr. Estava determinada a fugir ou morrer, não iria ser pega.

Foi um único instante. Hinata pensou ter visto dois pontos brilhantes a frente, por um segundo eles estavam na altura de seus olhos, mas depois sumiram e reapareceram mais abaixo. A moça piscou e eles desapareceram por completo. Antes que pudesse olhar de novo Hinata tropeçou em uma raiz proeminente. Lembrou-se das adagas seguras na mão esquerda e posicionou-as longe de seu corpo, deixando que seu flanco direito absorvesse o impacto. O ar foi expelido de seus pulmões porque suas costas bateram contra outra raiz, não conseguia nem dizer se da mesma árvore naquela escuridão, não importava.

Quando seus olhos focalizaram e parou de ver tudo dobrado, Hinata viu que as doze tochas que achava estar alucinando eram mesmo doze tochas se aproximando por diferentes pontos da floresta. Aqueles homens não desistiam! Por quê? Quais seriam suas ordens? O quê os movia?

Hinata trouxe os braços para cima e conseguiu se virar de bruços sobre os cotovelos. Suas pernas tremiam, seu tornozelo estava torcido – senão coisa pior – devido a queda, mas não havia dor, não se permitiria doer-se ainda. Tentou se colocar em pé e só conseguiu grunhir. Sentia seus membros pesados e indiferentes aos comandos de seu cérebro, o mesmo sentimento frustrante de tentar correr num sonho e ter-se impossivelmente lenta e pesada.

Sentiu os tremores do chão sob suas palmas mais do que os ouviu: algo pesado, forte, uma passada poderosa e se aproximando dela. Hinata olhou para a frente em sua posição semi-agachada, para a escuridão impassível, e seus olhos se ajustaram no último segundo para distinguir uma forma felina imensa pulando sobre ela, para trás dela e em direção aos pontos laranja que a perseguiam.

E no meio daquela floresta proibida, sozinha, órfã, machucada, aterrorizada, Hinata soltou um riso estrangulado pela estranheza de tudo aquilo: uma pantera! Uma pantera negra pulara sobre si e atacara o facho de luminosidade mais próximo que vinha para matá-la. Que fato estupidamente curioso e impossível! Não havia grandes felinos naquela parte do país, nenhum era visto tão ao norte há séculos.

Mais um dos pontos de luz se apagou ao longe, Hinata podia ouvir gritos ecoando, perturbando os pássaros e outros animais. Um a um os gritos cessaram e as tochas se extinguiram.

Uma pantera... E antes disso um corvo e antes um cervo e uma raposa e sabe-se lá quantos mais animais completamente pretos Hinata já não vira – ou imaginara – nos limites da floresta enquanto a encarava da janela do seu quarto, dos degraus externos da cozinha sentada comendo um rolinho de canela, enquanto colocava lençóis para secar no varal, ao passear a cavalo.

Deixou-se cair de costas novamente, a floresta agora assustadora e reconfortantemente silenciosa, o outono mais cheiroso do que nunca soprando as folhas no vento frio. Olhou para cima, para o dossel outonal que a impedia de ver o céu. Percebeu que estava chorando. Talvez fosse a adrenalina finalmente se esvaindo, suas veias relaxando. Talvez não tivesse parado desde que vira aquelas pessoas entrando em sua casa para abater seu pai, para fazer sabe-se lá o quê com ela. Talvez fosse alívio por saber que o que quer que fosse aquele animal que matara os soldados – ou mercenários, não saberia distinguir – logo estaria ali atraído pelo cheiro do sangue que a cobria e tudo estaria acabado.

Fechou os olhos por um momento ou muitos. Podia ter cochilado, mas abriu-os letargicamente quando ouviu um farfalhar de folhas proposital demais para ser apenas o vento contra as árvores. A esquerda da moça surgiu um homem que Hinata imediatamente descartou como sendo um dos revolucionários, afinal ele estava nu em pelo! Antes que pudesse corar, apagou.


Ele estava inquieto, nenhuma forma parecia natural quando na verdade todas eram. Havia uma garota humana sobre suas peles de dormir. O gato em si queria se aninhar junto enquanto a cobra tirava a língua para fora para saborear o ar; os pelos do pescoço de seu lobo se eriçavam e todos os seus pássaros piavam sem parar. Havia uma estranha humana em sua casa, em sua toca, e ele podia sentir o cheiro da dor dela pelo tornozelo fraturado e o corpo exausto por correr. Podia sentir a dor de perder tudo e todos, de perder o seu lar e o medo que ela sentiu ao correr para e pela floresta, a culpa de matar aquele outro humano cujo sangue ainda estava sobre ela e que ele farejava com repulsa.

Mais do que tudo, ele conseguia sentir o cheiro das lágrimas dela mesmo ainda desacordada.

O humano em si desceu da viga do teto onde estava empoleirado como morcego e colocou mais toras na lareira. Manteve o olfato e as orelhas do lobo e usou as garras da águia para rasgar o vestido cheio de sangue, depois voltou com suas mãos humanas quase nunca usadas para lavar com um pano úmido o sangue seco encrustado nela. Manteve os ouvidos abertos para qualquer alteração na respiração ou nos batimentos cardíacos que indicasse que ela podia estar acordando, mas ela continuava dormindo, provavelmente tendo pesadelos se as lágrimas e os sussurros desesperados fossem qualquer indicação. Com cuidado também sentiu os ossos do pé ao tornozelo e decidiu que eles estavam no lugar antes de atar um pedaço limpo do vestido apertado o suficiente para que ela não conseguisse causar maiores danos ao começar a se mover.

Quando o único cheiro de sangue que sentia vinha da água suja do balde ele levantou-se e saiu da cabana. Limpou o que precisava ser limpo, mudou para uma forma mais confortável de urso e saiu andando pela floresta ainda incerto do motivo de ter matado todos os outros, mas ter prontamente trazido aquela garota humana para o coração de seu território.

O urso balançou a cabeça, cansado de pensar sobre aquilo e rumou para o rio, para a leve queda d'água onde ele sabia que os salmões pulavam. Precisava caçar, precisava se alimentar e salmão era tão bom para seu urso e para sua águia quanto ratos e sapos eram para sua cobra e grama era para seu cavalo e seu cervo. Ignorou ao máximo os instintos de seu lobo e seu cão que gritavam volte, volte, alcateia, toca, companheira, lar, fique. Ignorou sua arara e seu babuíno que gritavam exatamente a-mesma-coisa. Ignorou seu tigre que fazia seu peito inteiro tremer ao ronronar tão alto que tivera medo de acordá-la.

E ignorou seu homem, seu animal mais incerto e mais instável, único que tinha medo de não conseguir controlar.


Hinata acordou chorando. Sentiu-se aliviada por estar viva e por ter um teto sobre sua cabeça e um fogo ardendo no fogareiro – embora não soubesse como chegara a ter aquelas coisas quando se lembrava apenas de ter desmaiado na floresta – enquanto sabia estar tão frio lá fora, sabia que seu pai estava morto, sua irmã estava distante e sua casa provavelmente fora saqueada e pilhada, senão incendiada, por ser o palacete de um senhor de terras construído com suor e sangue de trabalhadores.

Hinata ficou confusa sobre tudo e extremamente curiosa em saber quem era o homem que vira – ou achara ter visto – na floresta, embora corasse ao lembrar de seu corpo nu. Ficou mais confusa e assustada ao ver o seu próprio estado de nudez e puxou as peles nas quais estava deitada para cobrir-se até o pescoço, mas o gesto perturbou sua perna e a moça silvou de dor mesmo ao perceber a faixa improvisada feita com retalhos de seu vestido. Ficou intrigada por um momento antes de dar de ombros e julgar que o mesmo tinha sido colocado para bom uso dado seu estado anterior.

E então, ao anoitecer, ainda sem energias para sair de sob as peles, a porta da cabana que ela não percebera estar apenas encostada abriu-se com um empurrão. O empurrão da pata de um urso, um imenso urso negro parado no limiar da porta.

Ele esperou os gritos, desejou-os até, mas nada. Esperou, então, o desmaio, mas os grandes olhos brancos, iluminados pelo fogo, estavam bem abertos, arregalados e acordados. Esperou que ela pulasse em um pé só de sob as peles e tentasse escapar, mas não aconteceu. De onde ele estava podia ouvir os batimentos cardíacos disparados como os de um coelho em fuga, embora as orelhas do seu urso não fossem tão boas quanto as de outros dos seus animais; conseguia ainda sentir a ansiedade e o medo como um sabor emanando dela, mas o odor mudou quando ele finalmente resolveu sair do seu próprio torpor esperando pelas reações dela, tão distintas do que previra, e deu um passo, depois outro, encaixando seu corpo enorme pela abertura da porta, três salmões grandes mortos entre seus caninos, vários outros já acolhidos por seu apetite.

Agora ela cheirava a medo e surpresa, medo e interesse quando ele depositou os peixes na base do fogareiro e lambeu os beiços. Sentou-se sobre os quartos traseiros e lambeu as patas para tirar os últimos vestígios de sua pescaria, o corpanzil peludo bloqueando o ar gelado entrando pela porta aberta.

Ela não se mexeu.

Humana burra, será que ela não vira o peixe?

Ela continuava sem se mexer, os grandes olhos brilhantes encarando-o, a coberta de peles levantada até o nariz.

O odor que ela exalava deixou de ter medo e passou a interesse, curiosidade, até mesmo certa satisfação.

Ele não estava dando a mínima para o que ela sentia ou não, os odores das reações químicas do cérebro dela chegando até ele e sendo processados por seus sentidos sem que ele tivesse controle sobre seus instintos. Ele só queria que ela comesse o maldito peixe que ele passara horas pescando – e se alimentando também, francamente – e não morresse de fome depois de ele ter tido todo o trabalho de matar aqueles demônios, trazê-la até sua toca, limpá-la, cuidar de seu machucado e ainda deixá-la dormir em seu ninho.

Ela se moveu. A coberta caiu de seu rosto para os ombros e depois foi empurrada lentamente todo o caminho até o fim do monte de peles antes de ela se arrastar com cuidado até os peixes, os olhos o tempo todo cravados nele. Ele sentiu o cheiro do embaraço dela com a nudez e viu-a estremecer de frio, mas não se moveria dali até que ela tivesse comido pelo menos um salmão.

As facas que ela tinha consigo quando a trouxera até ali tinham ficado ao lado das peles e ela sentiu-se surpresa ao encontrá-las, então usou-as para abrir o peixe, limpar as estranhas com cuidado e depois prosseguir em raspar as escamas. Estranhamente, ele observou, ela cortou algumas tiras da carne laranjada do peixe e as comeu cruas, como qualquer um de seus animais faria com uma presa, e ele grunhiu baixinho e involuntariamente lembrando-se de sua própria refeição anterior.

Ela virou-se para ele com um sobressalto quando ouviu os ruídos do urso. E então sorriu. Ela voltou a atenção para o peixe trabalhando mais rapidamente nos outros dois. Espetou alguns pedaços de carne no atiçador de brasas que o velho que morara na cabana – há tanto tempo que ele nem saberia mais dizer há quantas vidas – fizera com madeira e cabeças de flechas. Se ela achou o objeto estranho, seus odores não acusaram. Depois de tudo pronto, ainda agachada, ela se voltou para o imenso urso negro com um pedaço considerável de salmão em uma das mãos e deu um passo cauteloso na direção dele, sempre com a perna esquerda para não prejudicar ainda mais sua fratura.

Foi a vez dele de não se mover.

O que essa humana burra estava fazendo? Ele já tinha comido, estava mais do que cheio, ela é quem tinha o estômago reclamando tão alto que ele conseguia ouvir mesmo com suas pequenas orelhas de urso.

Ela deu um segundo passo e ele continuou parado. Com o odor mais confiante e ousado, ela deu um terceiro passo e achou suficiente para colocar o salmão ao alcance do urso no chão de madeira escura da cabana.

E esperou.

Mais tarde Hinata poderia jurar que o urso revirou os olhos parecendo tremendamente frustrado com ela, mas naquele momento a grande fera apenas abaixou a cabeça, pegou o pedaço delicadamente com os dentes afiados e engoliu-o inteiro.

O odor da humana burra mudou para uma alegria satisfeita e o medo se dissipou completamente, talvez por saber que o urso sentado na soleira da porta parecia muito mais interessado no pedacinho de salmão suculento do que em sua pálida carne humana.

Quando ela terminou de comer, no segundo em que o último pedaço de salmão assado estava seguro no interior de seu estômago, o urso se moveu, colocando-se sobre as quatro patas e sobressaltando-a no processo. O odor de medo voltou por um segundo por causa do susto, mas logo se foi ao perceber que tudo o que o urso queria era ir embora, saindo pela porta do mesmo jeito cuidadoso que entrara. Ele desapareceu na noite, o pelo escuro camuflando-se facilmente na floresta.

Hinata sentiu-se triste de vê-lo partir, aquele estranho animal que queria partilhar sua pescaria com ela, e mancou desajeitadamente até a porta para fechá-la só para perceber que ela não tinha tranca, apenas um tipo de alavanca rústica que poderia se aberta por dentro ou por fora. Aparentemente a pessoa que construíra aquela cabana não estava muito preocupada com os tipos que poderiam entrar ali, humanos ou feras. Fechou-a com a tranca mesmo assim, colocou mais toras no fogo da grande pilha que encontrou ao lado da lareira e voltou para as camadas de peles.

Perto da viga do teto tinha uma abertura do tamanho de um prato de sobremesas e por ela entrou um esquilo todo preto. O esquilo parou um momento para observar a humana que começava a adormecer aconchegada em suas peles lá embaixo e logo se transformou em um pequeno pardal para planar e pousar ao lado dela. O pardal se transformou em um gato que pisou nas peles com cuidado, o odor de satisfação e segurança que emanava dela era pungente em sua língua, embora ainda houvesse tristeza e luto como gosto residual. Esses ele julgava que haveria ainda por muito tempo. Escolhendo um local estratégico sobre o monte – que agora já tinha tanto o cheiro de seus animais quanto o cheiro dela que estava sendo difícil controlar seus instintos de fique, nossa, fique, lar, companheira, fêmea, toca, nossa toca –, cofiou as garras por alguns minutos nas peles, mas ela nem se mexeu, já aprisionada no mundo dos sonhos até a chegada da manhã. Ele rodou sobre o mesmo ponto algumas vezes à maneira dos gatos e deitou-se, a cabeça pousando majestosamente sobre as patas dianteiras, e adormeceu também.


Aquela era uma cabana simples, mas forte para o inverno e com boa ventilação para o verão. Fora construída com habilidade e destreza. Havia um pequeno baú cheio de roupas num dos cantos, embora fossem roupas masculinas e extremamente fora de época, estavam em boas o suficiente para a necessidade dela de cobrir-se com alguma coisa. Sua nudez prolongada era, no mínimo, desconcertante.

Dez dias se passaram sem que conseguisse colocar o pé no chão apropriadamente, e mesmo quando o fazia de leve sentia uma dor inimaginável, então só se arriscava para fora da cabana quando suas necessidades fisiológicas se mostravam inadiáveis.

Quase caiu uma vez quando estava voltando para dentro, mas suas mãos se espalmaram no dorso macio de um cervo negro ao invés de atingirem o chão e o cervo seguiu ao seu lado como apoio pelo caminho de volta. Depois, sem emitir nenhum som nem olhar para trás, ele foi embora para dentro da floresta.

Dez dias em que tinha sua fome e sua sede saciada por diversos animais negros que entravam na cabana sem qualquer cerimônia, indiferentes se suas formas eram ternas ou ameaçadoras ou se a assustavam ou não. Eles pareciam muito mais confortáveis com o lugar do que ela.

Limpava a cabana o melhor que podia. Descobriu ali todos os tipos de utensílios rústicos para levar uma vida simples: panelas, um conjunto de mesa e cadeiras, uma pequenina despensa onde encontrou nozes, castanhas e uvas-passas, ervas e carne seca, e uma pia com um sistema de água encanada que precisava ser bombeada para chegar à torneira, mas que já era alguma coisa. Num dos cantos da cabana havia uma pequena estante com um número limitado de livros variando de tratados filosóficos, plantas medicinais e livros de história para romances barrocos e despudorados contos eróticos. A primeira vez que pegou um daqueles Hinata leu algumas linhas e o fechou rapidamente, colocando-o o mais longe de si que conseguiu na cama de peles. A raposa que dormia pacificamente na frente da lareira abriu os olhos instigada pelo movimento súbito, mas de resto manteve-se imóvel. Podia sentir o cheiro do embaraço dela, depois a curiosidade subjugando aquele sentimento e Hinata pegou o livro de volta enquanto a raposa voltou a fechar os olhos, pensando mais uma vez em quão tola aquela humana era.

Hinata tentava ao máximo manter um controle de quantos dias se passaram desde que sua casa fora atacada. No que calculava ser um mês depois de ter entrado na floresta, três dias após seu aniversário de dezoito anos, veio a primeira neve. A moça percebeu pelo cheiro de frio no ar e depois teve sua confirmação quando o lobo negro entrou na cabana com flocos de neve em seu pelo reluzente, fechou a tranca delicadamente com o focinho e foi se secar ao fogo.

Aqueles estranhos animais negros...

Hinata adquirira o hábito de falar com eles, já que não tinha companhia e não iria começar a ceder à loucura de falar sozinha tão já. E, mais estranho ainda, quando falava com eles, os diversos animais pareciam estranhamente concentrados em ouvi-la ou taciturnamente ignorá-la, dependendo muito do dia ou do assunto, ela percebeu.

O gato preto era o seu favorito, porque geralmente ele dormia consigo no monte de peles e, às vezes, concedia-lhe a imensa honra de deixá-la acariciar seu pelo macio.

A águia era sempre a mais inquieta e aparecia nos dias em que o tempo estava ruim, quando tempestades se aproximavam. Ela ficava empoleirada na viga do teto arranhando as garras enormes na madeira, eriçando as penas de tempos em tempos e sobressaltando Hinata ao fazê-lo. Não era o animal mais dado a conversas.

Passara a adorar o urso que a cada três ou quatro dias lhe trazia peixes. Ousara se aproximar dele uma vez e acariciar as patas dianteiras, as mãos trêmulas, o coração pulsando tão rápido que chegava a doer-lhe o peito. Acariciou primeiro a esquerda, de onde achava ser o pulso até a ponta das garras afiadas, apertando as almofadinhas delicadamente, passando o indicador pelo espaço entre elas. Mudou para a pata direita e fez a mesma coisa até o urso se cansar dela e recolher as patas, arrumar-se em uma posição esparramada contra a porta e fechar os olhos, dando a atenção dela por encerrada. Hinata voltou mancando e sorrindo até o monte de peles.

O lêmure era um dos que via com menor frequência e nunca dentro da cabana. Ele se aproximava dela quando estava lá fora, colocando algo para secar, recolhendo gravetos para o fogo ou tentando encontrar cogumelos para uma sopa, andando de seu jeitinho peculiar e depositava aos pés dela um punhado de sementes comestíveis. Naquela época do ano, mesmo que não fossem muitas, ela o agradecia acariciando a longa calda listrada que nos lêmures comuns seria branca e preta, mas que naquele seu lêmure amigável era preta e um ou dois tons mais claro do mesmo preto.

Seis semanas depois de entrar na floresta a perna de Hinata já voltara a estar forte o suficiente para que a morena arriscasse colocar seu peso sobre ela por períodos mais longos, ficando em pé e dando algumas voltas pela cabana sob o olhar atento da coruja-das-torres empoleirada sobre a lareira. Aquele era o momento que decidira que iria embora, precisava voltar para a fronteira sul, divisa com sua casa, e ir ao encontro de Hanabi. Com sorte conseguiria roubar um cavalo, talvez, e seguir viagem ao longo da borda da floresta. Depois de seis semanas certamente os soldados revolucionários já deveriam ter tomado todas as casas nobres da região e deviam julgá-la morta na floresta. Ou melhor, provavelmente os moradores das cidades próximas deveriam tê-los avisado sobre os perigos do lugar. E o não retorno de seus companheiros apenas serviria de prova para corroborar os temores.

Mas as primeiras neves vieram sucedidas de imensas nevascas, uma após a outra. Hinata ficou presa na cabana, sob as peles, com um furão negro enrolado em seu pescoço enquanto dormia. Eles comeram juntos castanhas assadas nas brasas da lareira e carne seca, derretendo neve para beberem água já que o inverno congelara a bomba da pia. Nos dias que não nevava ou que esta era apenas um gotejar lento e a floresta ficava imersa num silêncio abafado, Hinata e o furão saiam de casa. Ela tentava cortar madeira para a lareira e ele sumia. Não muito tempo depois um alce negro aparecia usando os chifres poderosos para varrer a neve da frente da porta da cabana, mas deixando que ela servisse de isolamento térmico ao redor das outras paredes. Ele fazia o seu serviço e ia embora calmamente. Hinata entrava na cabana e até chamava pelo furão para que ele voltasse, mas os animais negros eram tão volúveis quanto o clima, eles faziam o que bem entendiam.

No meio do inverno, em uma de suas noites ouvindo o vento assoviar entre as árvores e tocar uma melodia macabra ao passar pelas juntas da madeira da cabana, ela percebeu que teria de adiar seu plano de encontrar Hanabi até a primavera, quando as neves tivessem derretido e o tempo não fosse tão inclemente. Seu pé já não estava mais nem dolorido nem sensível e conseguia andar perfeitamente bem.

Numa noite no fim do inverno as nevascas cederam embora ainda estivesse brutalmente frio. O furão parou de aparecer e a coruja-das-torres veio mais vezes, empoleirando-se na lareira e escondendo a cabeça sob as asas para dormir. Foi numa dessas noites que Hinata, entediada além do imaginável por já ter lido todos os livros da cabana, alguns deles duas ou três vezes, começou a contar estórias. Primeiro elas eram apenas recordações das coisas que lera e aprendera na biblioteca de seu pai, muito sobre cultivo de trigo, arroz, soja e milho, as principais plantações de sua família, mas depois o assunto passou para seus livros favoritos, aqueles que romantizavam os séculos anteriores do país, quando as bruxas, os vampiros, lobisomens e outras criaturas ainda existiam aos montes como irmandades e clãs poderosos, mil anos atrás, antes das grandes perseguições.

Depois ela falou dos animais. A cabeça da coruja-das-torres saiu de sob a asa e seus olhos vermelhos se cravaram na morena atentamente, quase como se ela fosse sua próxima presa. Ela percebeu a atenção e começou a falar mais animadamente sobre os diversos animais de outrora das quais lera e que dificilmente ainda existiam: as manticoras, basilíscos, kappas, unicórnios, raposas-de-nove-caldas, grifos, dragões...

A sua humana falava sobre as lendas dos animais mágicos como se elas fossem meras estórias, meras palavras sobre as páginas de um livro, seres de imaginação, mas ele se lembrava. Ele se lembrava da época antes das grandes perseguições e de todos aqueles seres fabulosos que vagavam pelas terras, céus e mares antes dos humanos verem-nos como ameaças, como as raças superiores que eram, e destruírem-nos. Mas sua humana falava deles com reverência e ele sentia-se orgulhoso, sua coruja noite após noite voltando para a cornija da lareira e encarando-a até que ela começasse a falar, não importando se era sobre uma nova criatura da qual se lembrara naquele dia ou sobre uma da qual já lhe contara dez vezes. Ele bebia de suas palavras.

Ele passara os primeiros dias tentando não se importar com a humana burra e fraca que salvara, jamais admitindo porque o fizera, como jamais admitia todas as vezes em que se encontrava nos limites da floresta observando o palacete da família onde ela gostava de ler sob o sol fraco do início da primavera e escovar os cavalos no estábulo e pular corda com as amigas barulhentas usando ridículos vestidos de verão e chapéus de abas largas para evitar sardas sobre os ombros pálidos.

Era sempre tão difícil dar o primeiro passo para fora da porta, todos os seus mil narizes e sentidos que detectavam o cheiro dela, as reações químicas de suas emoções, o timbre suave de sua voz, o farfalhar de seus cabelos, o sobe e desce de seu peito entre as respirações e até mesmo a curva suave de suas panturrilhas, todos gritando para que ficasse! Volte! Companheira! Lar! LAR! E voltar para a cabana, para onde a humana tola tinha infectado todo o seu território com seu cheiro. Era tão, tão fácil deixar-se levar que, às vezes, pegava-se voltando para lá antes de raciocinar que era isso que estava fazendo.

Mas também havia dias como aquele, quando as neves de inverno já estavam derretendo e o cheiro dos sentimentos de Hinata mudavam para uma determinação impulsionada pelo desespero e pela saudade e ele sabia que ela logo tentaria partir. Nessas horas era fácil fugir, passar pela porta, mudar para sua pantera ou tordo ou para o rato – que era como se sentia – e ir o mais distante possível dentro dos limites de seu território, porque era tudo o que conseguia fazer.

Ainda estava frio, mas já era primavera e Hinata não esperava pegar mais nevascas em seu caminho para o sul. Os animais continuavam vindo e lhe deixando comida, mesmo que agora ela pudesse andar sem quaisquer dificuldades. Fez um saco costurando juntas várias peles de esquilo que o lobo por vezes lhe trazia e juntou dentro dele mais roupas do baú que encontrara e mantimentos que sobraram na despensa depois do inverno. Calçou suas botas e amarrou bem a barra da calça dentro das mesmas, guardou as adagas recém-afiadas nas bainhas e prendeu o cinto firmemente sobre os quadris. Deixou a cabana o mais arrumada possível e saiu pela porta trancando-a em seguida.

Nenhum dos animais negros estava por perto e ela se sentiu com o coração partido de ir embora e não poder dizer adeus a eles.

Hinata deu as costas à cabana e começou a andar mantendo o sol a sua esquerda. Seguiu em um ritmo constante observando a floresta e como ela estava mudada desde a noite em que entrara correndo freneticamente por ali para salvar sua vida. Imaginou se encontraria os restos dos invasores de sua casa quando chegasse perto da fronteira de suas terras – que já não deviam ser suas terras depois de mais de três meses desaparecida.

Imaginou o que fora feito do corpo de seu pai.

Parou apenas uma vez para descansar e prosseguiu comendo frutinhas que encontrava pelo caminho. Tinha razão em querer comer os mirtilos, tantos anos atrás, os que cresciam selvagens eram os mais saborosos.

O sol já estava se pondo a sua direita quando avistou a cerca. Os arbustos de mirtilos lá já tão altos que quase a escondiam, mas Hinata a reconheceu e reconheceu as paredes externas do que um dia fora sua casa. Ao aproximar-se viu que eles realmente tinham-na incendiado, mas o fogo fora apagado antes que a consumisse por inteiro. A ala direita era apenas uma carcaça, vigas apontando como as costelas de um grande animal. Não havia sinais de pessoas na propriedade, as janelas continuavam escuras devido as barricadas e a grama crescia descontrolada por todos os lados. A porta da cozinha, com os degraus onde gostava de comer sua sobremesa todos os dias, estava aberta, apoiada em apenas uma das dobradiças e gemendo pateticamente com as lufadas de vento. Parecia o cenário perfeito para um conto de terror em contraste ao brilho primaveril entre as árvores da floresta que lhe havia sido pintada como tão má e assustadora.

Secou as lágrimas que não impedira de cair e avançou para a cerca.

Hinata não soube dizer se foi o mundo ou ela que girou mais rápido. Piscou e ao abrir os olhos viu-se na clareira, de frente para a cabana, a luz do poente filtrada pelas árvores iluminando-a lindamente.

- O quê...? – Ela tateou a madeira castanha, certa de que aquilo só poderia ser algum tipo de alucinação, mas lá estava ela, tão sólida quando sentia a si mesma.

- Você foi avisada para ficar longe da floresta, nunca se perguntou por quê?

A voz masculina e rouca pelo desuso a sobressaltou, levando-a de volta para o terror que sentiu todos aqueles meses antes ao ter de fugir de seu lar. Ela se voltou para o estranho, mas o terror que sentia foi suplantado pela surpresa:

- Você... – O homem que achara ter visto naquela noite, os mesmos cabelos pretos igual as pelagens e penugens de todos os animais que a ajudaram, nu como da primeira e última vez que o vira. Mas agora ela já sabia quem – o quê – ele era. – Você é um metamorfo, sua pantera me salvou...

Ele continuava sério, absolutamente impassível e majestoso como ser humano como era enquanto qualquer um de seus outros animais. Não tinham entre si as mesmas convenções sociais e o rubor dela ao observá-lo era meramente irritante.

Hinata levou as mãos à cabeça quando uma pontada de dor a atingiu na têmpora. Ela caiu de joelhos, a bolsa de couro de esquilos sendo largada a seus pés. Ele andou até ela, calmamente, já ciente de que aquele era o efeito colateral de ser jogada magicamente desde a fronteira até o centro do território, coisa que acontecia todas as vezes que alguém dentro da floresta tocava a barreira invisível que a protegia.

- Acha que porque eu matei aqueles humanos eu sou o motivo de temerem este lugar? – A voz dele estava próxima e quando Hinata finalmente conseguiu manejar a dor e olhar para cima os intensos olhos negros estavam na altura dos seus.

Ela o encarou de volta e viu ali os olhos vermelhos de todas as feras com quem tinha partilhado abrigo, comida, água, calor, segurança.

- Não... Não é você. – Suas palavras foram apenas um sussurro enquanto ela tentava fazer sentido do que acabara de entender em sua cabeça. – É a própria floresta.

Num segundo ele estava bem na sua frente, o hálito quente sobre seu rosto, as feições sérias. No outro estava mudando de forma, afastando-se dela como uma gazela, um leão, uma gaivota, um gorila, um elefante, um esquilo, cada transformação mais rápida que a outra, até voltar a forma humana metros longe dela.

- Como eu posso sair daqui? – Ela perguntou depois de um silêncio pesado que nem os animais da floresta ousavam quebrar.

- Não pode.

- Mas...

- Não pode.

- Não posso... – Ela apertou os braços contra si mesma temendo o que diria em seguida. - ...ou você não irá me deixar?

Ele transformou-se em um leão e rugiu. O barulho perturbou os pássaros que saíram em revoada de sobre as copas das árvores e Hinata levou as mãos aos ouvidos.

Agora ela voltara a cheirar a medo e decepção e tristeza.

- Você não pode sair. – Sua voz humana lhe parecia ainda mais estranha do que se lembrava. – Aqueles que entram na floresta por vontade própria não podem deixá-la.

- Eu não...

- Sim, você entrou por vontade própria. – Ele lembrava-se daquela noite tão bem quanto ela porque sentira o momento exato em que a maldição a alcançou. – Você estava fugindo, mas viu este lugar como sua única opção.

Hinata arfou sentindo suas emoções dançarem em rodamoinho dentro de si, as lágrimas subindo-lhe e transbordando com a enormidade do que aquilo significava. Chorou com vontade tudo o que antes tinha chorado tentando suprimir. E ele a deixou chorar com o peso da responsabilidade mais uma vez sobre si, inevitavelmente.

- P-or quê? – A voz dela veio muito tempo depois quando as lágrimas já corriam fracas, mas ainda corriam. Ela o via embaçado e achou melhor assim. Ele continuava teimosamente em sua forma humana, sentado do outro lado da clareira em um galho baixo de uma árvore da qual não se lembrava o nome. Ele a ouviu, mas Hinata teve a necessidade de perguntar mais claramente: - Por quê?

O sol já tinha se posto completamente aquela altura e as criaturas tinham voltado a emitir seus sons distintos. O vento de começo de primavera soprava gelado e Hinata conseguiu ouvir, mesmo com suas ordinárias orelhas humanas, a dor na voz dele:

- É parte da minha maldição.

O homem sumiu e o corvo planou até onde ela estava. O lobo a encarou e farejou seus cabelos antes de as mãos humanas voltarem ao seu campo de visão, os olhos negros, a pele pálida contra a noite.

- "Você, que possui a liberdade de mil feras, jamais terá a liberdade do homem; esta terra será sua prisão e de qualquer um que nela voluntariamente pisar, pois para eles resta a liberdade da morte, enquanto para você apenas o pesar".

Ela levou as mãos aos olhos e esfregou as trilhas de lágrimas secas. Ele estava agachado a sua frente, mas ao fitar seus olhos não conseguia se lembrar de sentir vergonha, sentia-se apenas... Triste. Por seu destino e pelo dele.

- Há quanto tempo você está preso aqui? – Perguntou suavemente. Tinha que fazer suas perguntas enquanto ele ainda estava disposto a responder, pois se o homem fosse minimamente parecido com seus animais, logo ele se cansaria e lhe daria as costas.

- Um mês, cem dias... – Ele falou, sério. – Mil anos, dez vidas...

O coração dela se apertou mais.

Ela acabara de saber que não conseguiria sair, que jamais veria Hanabi de novo, e já se sentia presa, enclausurada, morta. Como seria para ele que sempre estivera ali, observando a vida correr pelos limites que lhe foram impostos, vendo os intrusos voluntários morrendo de velhice e os intrusos involuntários saindo dali como se tivessem apenas feito uma curva errada na estrada?

Quis tocá-lo como tornara-se tão familiar tocar seu gato, mas não o fez. Aquele homem não era o gato não era o lobo não era o urso não era a serpente não era a coruja e era todos.

- Qual seu nome?

Ele pareceu, apenas por um momento, sobressaltado com a pergunta, depois mais um momento de confusão como se não se lembrasse.

- Sasuke... – Ele disse para si mesmo, confirmando, as sílabas rolando estranhas por sua língua. Quando levantou a cabeça, ela sorria como sorrira para seus animais antes de saber sobre sua maldição. Ela sorria como se não houvesse nada de errado no mundo.

- É bom finalmente saber seu nome, Sasuke.

Fique, lar, companheira, marque-a, ame-a, fique, nossa, LAR!

Ele não tinha mais nada para dizer, então deixou que a pantera tomasse conta de seu corpo. Levantou-se dos quartos traseiros e foi até a porta da cabana. Levantou o trinco com o focinho e abriu-a com a pata dianteira. Virou-se para trás, para o local onde Hinata estava parada, encarando-o curiosamente, e bufou para chamá-la.

A moça levantou-se e recolheu a bolsa. Aproximou-se do grande felino na porta e este deu espaço para que ela entrasse, uma das mãos pousada confortavelmente em seu pelo macio, e fechou a porta ao passar.


Parte 1 da minha fic de Halloween que deveria ser uma one-shot, mas que não será porque ela se estendeu mais do que a minha ideia original e, francamente, acho ótimo. Tentarei não tardar com a Parte 2!

Agradecimentos especiais para Arê-sensei e Tifa por sempre, sempre, estarem aqui por mim apoiando as ideias e fazendo revisões tardias!

Espero que gostem!