2. Raphael - UM MILAGRE DA NATUREZA, ÚNICO E IRREPETIVEL
Depois de experimentar o milagre do amor e testemunhado a dureza da morte, Katrina parecia inconsolável. Abraçando o ventre, saiu da sombra, chorando num andar cambaleante foi para casa. A dor percorria-lhe o espírito. Sentia-se enganada, entregou a sua alma por um momento de amor, um momento curto de mais para tão pesada factura, um momento longo bastante pois duraria para toda a eternidade.
Maria que rejeitara a sua filha, estava inconsolável, nervosa e inquieta. Rezava compulsivamente agarrada a um terço. A parteira, com a bebé no colo, embalava-a para lhe calar o choro numa tarefa que parecia impossível. A criança vencida pelo cansaço adormecia acarinhada no peito de uma estranha, no calor que não era o seu. A parteira coloca-a no berço ao lado da cama de Maria que a fita de lado com ar de desagrado. Com um movimento brusco, nada típico de quem acabara de ter um filho, Marie levanta-se, vai a cozinha regressando com uma faca nas mãos. A entrada do quarto e aproveitando que a parteira está de costas pegando nos lençóis manchados de sangue, avança em direcção ao berço. Nos olhos a loucura imperava, a falta de sentimento dominava-a como se estivesse possuída. Diante do berço Maria tenta desferir um golpe fatal sobre a sua filha sendo impedida pela parteira que entretanto se apercebera do acto tresloucado e inexplicável daquela mãe. Maria cai por terra, a faca é projectada contra uma parede. Maria visivelmente transtornada arrasta-se pelo chão como um réptil, senta-se encostada á parede pegando na faca empunhando-a na direcção da parteira. Os cabelos molhados, do esforço que momentos antes tinha feito para dar vida aquela que agora desejava matar, cobriam-lhe o rosto.
"Afasta esse demónio de mim, já te disse que não a queria"
Sempre com a faca empunhada em forma de ataque ou defesa, com a raiva incaracterística de quem tinha acabado de fazer parte do milagre da vida.
"Já te disse, afasta-a de mim, não a quero, não a quero..."
"Mas o que se passa contigo Maria, é a tua filha..."
"Leva-a com essas mãos que a ajudaram a nascer ou terá nas minhas o fim da sua existência... leva-a..."
A parteira não queria acreditar no que ouvia nem no que acabara de presenciar. Olhando a pequena bebé que dormia como um anjo, aconchegou-a, encostou-a contra o seu peito. Sem voltar as costas a Marie, por receio, por estar incrédula saiu do quarto.
Na rua com a criança protegida, Cruza-se com Katrina que cambaleava encostando-se as paredes para não cair. O manto que já fora negro brilhava como ouro impregnado pelo sangue de Raphael. Já em casa, entrou na sala onde fizera o ritual satânico, coloca-se diante do altar. As lágrimas banhavam-lhe o rosto, o arrependimento cruzava-lhe o espírito. Num momento de raiva derruba tudo o que tinha adorado, como se isso pudesse mudar os acontecimentos como se pudesse reduzir-lhe a dor ou a culpa. Despiu lentamente o manto que beijou e dobrou, ajoelhando-se num choro que parecia não querer terminar. Estava completamente nua, despida de vontade de viver, o seu corpo esculturalmente belo, o seu corpo que outrora tinha sido puro e agora estava penhorado nos infernos.
"O que fui eu fazer Raphael, o que fui eu fazer!"
Com o sentimento de culpa entranhado na mente, olhou para a faca com a qual havia aberto o caminho da perdição e apenas um pensamento lhe vinha á cabeça. Se estava condenada ao fogo assumiria o seu destino já, sem retardar o sofrimento bem menor que aquele que sentia. Quando a tentação de por termo a sua vida era maior... as palavras do criador soaram na sua perturbada cabeça, como um sinal de aviso, como que se da visita de um anjo se trata-se:
"Aquele que o teu ventre demoníaco vai gerar será a salvação do Mundo... e chamar-lhe-ás Raphael"
Estas palavras fizeram-na recuar nas suas intenções, fizeram parar o choro compulsivo dando lugar a um rosto carregado mas sereno. O corpo nu que estremecia acalmou-se, com as mãos percorreu o ventre sabendo que tinha em si o fruto do maior dos amores. E se Deus o tinha permitido então a sua existência serviria para algo. Era a sua vontade... que a vontade de Deus fosse feita, dar ao mundo o salvador, nascido de um amor proibido, gerado no ventre de quem se destruiu e assinou a sua imolação eterna no fogo do Inferno. Num gesto de compaixão para consigo própria levantou-se, abriu uma gaveta, tirou uma camisa de noite que vestiu sem pressa. Uma camisa que lhe acariciou a pele, que lhe deu abrigo, que lhe cobriu as formas de mulher. Deitou-se sobre a cama, com as mãos no ventre, sorriu e adormeceu como um justo faria.
À porta da igreja, a parteira tinha no rosto a indecisão do que fazer com a bebé ainda sem nome... sem mãe, sem o carinho pelo qual ansiou durante nove longos meses. Queria guarda-la para si, mas não podia, não podia criar uma criança que a mãe havia rejeitado e momentos antes tentado matar. Não podia fazê-lo com essa mãe a viver na mesma cidade. Correria um risco desnecessário e que acabaria por ser consumado mais cedo ou mais tarde. Olhava para a pequenina que dormia profundamente e que nem o frio da noite acordava. Olhava-a no rosto enquanto a imagem de Katrina encostada as paredes lhe pairava na cabeça. Algo de estranho se havia passado, algo inexplicável aguçava a sua curiosidade.
"minha pobre criança, indefesa e inocente... tenho que te arranjar um nome... um nome forte, marcante pois bens vais precisar de força para crescer neste mundo cruel..."
Só havia uma solução, a sua paragem em frente á porta da igreja não era fruto do acaso. A criança teria de sair da cidade, teria de ser entregue a quem lhe desse amor e a protegesse de todos os ataques. O padre Miguel era um homem do bem, saberia o que fazer com ela.
Bateu na porta da casa paroquial com suavidade para não acordar a inocente. O padre abriu a porta com cara de sono, esfregando os olhos e olhando para o relógio...
"Boa noite Brigitte, o que te trás a casa do senhor a esta hora?"
"Desculpe senhor padre, não o incomodaria se não fosse importante, é um assunto de vida ou morte"
"Calma mulher, respira fundo, entra entra, e conta-me o que tanto te inquieta"
Brigitte entra na casa paroquial, inquieta e assustada com tudo o que tinha presenciado. O padre Miguel pressentia algo de errado, a criança no colo de Brigitte deixava-o preocupado e ansioso por escutar a verdade. Num acto de cavalheirismo, puxou de uma cadeira convidou-a a sentar-se.
"Senta-te Brigitte, queres um copo de água?"
Brigitte disse que não com um simples abanar de cabeça. Esperou que Brigitte se acalma-se, sentando-se ao lado dela sem a questionar, olhando apenas fixamente a criança como que pressentindo algo de menos bom. A pequenina começou a mexer-se, abriu os olhos no momento em que o seu olhar inocente se cruzou com o do padre Miguel que a observava fixamente. Um arrepio atravessou o corpo do padre que não demonstrou medo, mas sentiu-o.
"Estas mais calma Brigitte?"
"Sim senhor padre, desculpe o nervosismo, mas hoje passaram-se coisas muito estranhas, assustadoras, por isso aqui estou."
Brigitte contou ao padre que a escutava com um ar apreensivo tudo o que a havia conduzido até sua casa. Que aquele era o único sitio e a única pessoa a quem podia recorrer. O mais importante era defender a criança dos ataques da mãe. O padre debruçou-se sobre a pequenina criatura, passou-lhe a mão no rosto com a bondade que o caracterizava.
"Diz-me Brigitte, como se chama esta pequenina?"
Sem reflectir, ainda com o pensamento no comportamento estranho de Katrina respondeu
"Katrina senhor padre, é esse o nome dela... Katrina"
"Muito bem pequena katrina, agora estas em segurança"
O ar apreensivo do padre era disfarçado pela sua bondade e pela graciosidade com que as palavras saiam da sua boca. A ternura que manifestava com a pequena Katrina era pouco menos que um pequeno milagre... mesmo sabendo que algo se passava com aquela criança.
"Brigitte, peço-te só que fiques aqui com ela até amanhã... eu vou dormir para a Sacristia. Sabes, não é meu hábito tratar de crianças tão pequenas..."
"Sim senhor padre, eu fico"
"Há leite no frigorífico, esta pequenina deve ter fome, faz como se estivesses na tua casa."
Olhando mais uma vez nos olhos da pequena katrina sorriu, mas curioso em relação ao que de facto representava aquela alma. Despediu-se de Brigitte com um singelo - Boa noite que Deus fique contigo - e saiu. À porta da casa paroquial parou, olhando o céu como que buscando uma explicação que não conseguia obter, meteu o seu chapéu na cabeça e dirigiu-se para a casa de Maria na tentativa de conseguir uma explicação plausível para tal atitude. Diante da porta aberta da casa de Maria um arrepio, o mesmo arrepio que lhe havia cruzado o corpo ao ver a pequena Katrina, fé-lo parar. Estarrecido e receoso do que o esperava la dentro. Era difícil para uma pessoa tão boa como o padre Miguel assistir ao desmoronar de uma família que ele havia juntado com os votos sagrados do casamento. O marido de Maria tinha sido assassinado brutalmente numa estrada por ladrões que não evitaram ceifar-lhe a vida por meia dúzia de tostões. Agora era Maria que rejeitava a filha que o seu ventre tinha aconchegado durante nove meses. Algo de estranho se passava, Michael sabia que podia estar prestes a assistir a algo inexplicavelmente horrível. Com a força de um homem de Deus contornou o medo e entrou. Dentro de casa o mesmo arrepio percorreu-lhe o corpo, o cheiro a enxofre pairava no ar, as sombras varriam as paredes em movimentos velozes. Ouvia gemidos de dor, o tormento dos não vivos perdidos durante a vida eram a única coisa que conseguia ouvir. O medo não o fez recuar, embora soubesse que o mal estava naquele lar. O ar tinha ficado subitamente gelado, ao ponto se ser cortado á faca, a respiração sentia-se parecendo fumaça. Miguel mete a mão no bolso tirando a estola colocando-a em volta do pescoço. Do outro bolso tira um frasco de água benta. Benzeu-se beijou a cruz inscrita em fios de ouro na estola e caminhou em direcção do quarto de Maria que estava entre aberta. Do interior do quarto saiam grunhidos abafados e clarões de fogo. Michael não teme, não o mostra pelo menos e avança calmo preparado para o pior que alguma vez a sua vista pura tivesse alcançado. Enquanto caminhava lançava gotas de água benta nas paredes fazendo as sombras afastarem-se. Ao aproximar-se da porta do quarto os clarões diminuem a sua intensidade e os grunhidos desaparecem. Ao ver o que se passava dentro do quarto a garganta engoliu em seco com o horror. Pendurada no candeeiro, enforcada com o mesmo lençol onde havia dado a luz a sua filha estava Maria. Completamente nua, os seios tinham sido arrancados, o sangue corria-lhe pelo corpo formando uma poça no chão. Como se de cães selvagens se tratasse, dois anjos negros, de asas abertas, vestindo apenas calças, bebem o sangue da poça. No chão de joelhos atacando-se um ao outro ferozmente numa luta de sangue. Miguel leva a mão á boca horrorizado, parecendo não conseguir suster o vómito. os anjos apercebem-se da sua presença lançaram-lhe grunhidos ferozes mas sem o atacar. O padre recompõe-se e entra lentamente no quarto enquanto recita os salmos.
"Eu clamo a Deus e ele me salvará. De manhã, á tarde e ao meio dia, choro angustiado e ele ouve a minha voz... O senhor fica perto dos que estão desanimados e salva os que perderam a esperança... A minha salvação e minha honra de Deus depende; ele é a minha rocha firme, o meu refugio. Confiem nele em todos os momentos, ó povos; derramem diante dele o coração, pois ele é o nosso refugio"
Ao mesmo tempo que recita os salmos lança água benta sobre os anjos que agora tomaram uma postura erguida. As asas negras bem abertas e o seu rosto destemido não impressionam o padre Miguel que continua a avançar. O sangue de Maria escorria-lhes da boca, percorria o queixo e em pequenas gotas caia no chão.
"Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome..."
Os demónios começam a recuar, enquanto Miguel reza o pai Nosso. Os anjos ficam encostados á parede, o padre benze-se.
"Em nome do pai, do filho e do espírito santo"
Sopra no rosto dos demónios que soltam um urro violento dando um golpe forte no peito do padre Miguel. A violência do impacto foi de tal forma forte que o padre voou pela casa batendo na parede da sala e caindo por terra desamparado. Os dois anjos aproximam-se do padre, cercando-o.
"Vocês humanos são patéticos... lutarem contra demónios é um contra-censo. A vossa natureza é como a nossa, consumir e existir"
Sem lhe tocar, erguem o corpo inanimado de Michael do chão, movido por uma força invisível. Olha-o de frente, bem nos olhos que o padre começa a abrir.
"As tuas rezas nada podem contra mim, a tua água benta refresca-me, o teu sopro dá-me alento. Diz-me onde está a criança e poupo-te a vida"
"Não te temo demónio,o que procuras está protegido e nunca lhe tocarás"
O anjo encosta a cara em Miguel, cheira-o, passa-lhe a língua pelo rosto deixando um traço vermelho com o sangue de Maria que ainda tem na boca.
"Sinto o sabor do teu medo, onde está o teu criador nesta hora em que a humilhação se apresenta diante de ti?"
"Quem não entende um olhar jamais entenderá uma explicação... nada do que eu te diga te servirá como resposta... mata-me monstro, envia-me para junto de meu Pai, para junto da luz que é a sombra de Deus"
O demónio revoltado faz um gesto com o braço, lançando o padre Miguel com toda a violência contra outra parede caindo inerte no chão. O demónio aproxima-se dele, desferindo-lhe alguns golpes com os pés. Com o sangue a escorrer-lhe da boca e caindo sobre Miguel o demónio levanta a mão para dar um golpe misericordioso deixando-a cair com violência sobre o rosto do padre Miguel. As marcas profundas das unhas da besta ficaram marcadas na cara de Miguel. Os dois anjos desaparecem esfumando-se no ar deixando um cenário de terror e destruição na casa de Maria. As sombras desaparecem levando consigo os grunhidos,a paz possível volta à casa onde a morte faz a decoração.
Na casa ao lado, Katrina dorme profundamente sobre a cama. Aos poucos começa a mexer-se, sentindo dores na barriga. O rosto tranquilo dá lugar a algum mal estar, um sofrimento que aumenta a cada instante. A barriga tinha crescido de uma forma abismal, parecendo ter dormido durante nove meses. As dores que sentia eram contracções. Nove horas volvidas e no ventre de Katrina tinha se desenvolvido a criança profetizada como o salvador da Humanidade. O milagre da vida, o milagre do Universo estava prestes a acontecer. Katrina não quer acreditar, olhando aterrorizada para a barriga onde serpenteiam braços e pernas. Senta-se na cama, com as pernas bem abertas, não há ninguém para a ajudar nesta hora, está sozinha e sozinha terá esta criança. As dores agudizam-se levando-a a gritar por entre os dentes para que os demais na aldeia não oiçam. O nascimento do filho de Raphael está próximo. Katrina tenta respirar com calma mas, em vão, as dores cortam-lhe a razão. Segura com toda a força que tem nas barras de ferro da cabeceira da cama, de tal modo que as consegue vergar. Fazendo força a cada contracção, puxando para auxiliar o fruto do amor proibido a viver. Entre o suor do cansaço e o rosto agastado nasce o pequeno Raphael, filho de um anjo com um demónio anunciado. O choro do bebé foi calado pelo aconchego do colo de Katrina. Era um bebé normal, de pele alva, olhos azuis claros sem cabelo. Era óbvio que se tratava do filho do Anjo Raphael, as tatuagens que aparecem nos corpos dos anjos quando se aproxima o demónio nasciam na pele do pequeno Raphael. Katrina estava maravilhada, chorando de alegria olhando-o da forma mais carinhosa que se possa imaginar.
"Olá pequeno Raphael, bem vindo"
Entre as caricias de Katrina e os sorrisos do pequeno Raphael aparece no quarto Lucifuges, o mais importante dos anjos de Lucifer. A sua presença atestava a importância daquela criança.
"Olá Katrina"
"O que queres, quem és tu?"
"Digamos que sou o cobrador de dividas do teu príncipe... Lucifer"
"Que queres de mim? Ainda não chegou a minha hora!"
"Não és tu quem decide isso Katrina"
E soltou uma risada abafada, saida das entranhas.
"Deixa-me em paz, não te aproximes de mim"
O anjo aproxima-se de Katrina ignorando o seu pedido, senta-se na cama, sem esboçar nenhum movimento agressivo. A calma imperava no seu discurso, uma calma mórbida.
"Calma Katrina, não é a ti que venho buscar, venho buscar o filho de Raphael"
Katrina encosta-se a cabeceira da cama, segurando o filho com toda a força que tem, agonizando com a possibilidade de o perder.
"Não, ninguém levará o meu filho, ninguém"
Lucifuges mantém-se calmo, desliza suavemente uma mão por entre as pernas de Katrina que tenta fecha-las sem sucesso.
"Então katrina! Não sabes que deves cortar o cordão umbilical?"
E com um movimento brutal segura no cordão que ainda une mãe e filho puxando-o com tanta violência que arranca a placenta a Katrina. Katrina grita de dores fechando os olhos, as lágrimas de aflição tombam-lhe do rosto. Com um sorriso sádico, Lucifuges cheira o cordão umbilical, cortando-o com os dentes. Katrina está encolhida, protegendo o seu bebé o melhor que pode. Chora compulsivamente pois sabe que não tem poder para lutar contra tamanho poder.
"Vá Katrina, entrega-me essa criatura que é aguardada no Inferno com impaciência"
"Não, leva-me a mim, o meu bebé não...
Lucifuges avança para katrina na intenção de lhe tirar a criança. O seu rosto muda subitamente, da sua boca começa a sair um espesso liquido negro... negro como as trevas. Nas suas costas o padre Miguel acabava de lhe cravar um crucifixo de prata que o trespassara. o anjo da morte fica imóvel, mais duro que uma estátua de pedra. O padre, visivelmente combalido, com um braço encostado no corpo sem se poder mexer pede a Katrina para fugir.
"Rápido Katrina, não sabemos o tempo que isto o vai reter, trás a criança"
Katrina sabe que não pode fugir ao seu destino, destino que ela escolhera na invocação do demónio. Era hora de ajustar contas com a consciência. Chegava a hora de se tornar alvo de seus actos, de proteger e manter viva a prova de amor que lhe restava.
"Não padre, eu fico, este é o meu destino... tome o Raphael e proteja-o"
"Que dizes Katrina? pega no teu filho e salva-te"
Katrina aproxima-se de Miguel e entrega-lhe nos braços Raphael. Baixa-se para o beijar, numa despedida certa e eterna. O padre está incrédulo, mas aceita a vontade de Katrina, embrulhando a criança no seu casaco e saído porta fora...
Katrina volta-se para o demónio que continua cravado no chão, imóvel, saindo-lhe pela boca o negro da alma. Senta-se na cama e começa a rir as gargalhadas na cara de Lucifuges que a segue com o olhar.
"Ai Lucifuges... querias tanto aquele que salvará a humanidade das tuas garras e do nosso mestre e acabas por me levar apenas a mim... estranha a vontade de Deus, deixar que uma alma condenada traga ao mundo o salvador"
Katrina levanta-se, os olhos cobrem-se de negro, as veias parecem querer saltar-lhe da pele, o estado de tensão é nítido. Coloca-se nas costas do anjo negro e com um só golpe enterra o crucifixo mais profundamente em Lucifuges. Ergue-se no ar voando em torno do demónio. Pára diante de Lucifuges sorri, beija-lhe a testa e com uma velocidade anormal crava-se na ponta do crucifixo que saia do peito do anjo negro ficando colada a ele...
"Agora leva-me para junto de nosso mestre, leva-me para o braseiro eterno pois minha alma está condenada mas o milagre da vida perpetuara o meu nome no reino dos céus"
Numa dor difícil de esconder, katrina e Lucifuges explodem juntos, levando com eles parte da casa e do santuário que servia de passagem aos demónios.
O padre Miguel entra na casa paroquial ao mesmo tempo que se ouve a explosão. Brigitte aproxima-se da porta vê o padre com outra criança no colo.
"o que se passa senhor padre, quem é essa criança? o que lhe aconteceu? Quem lhe fez isso?"
"Calma Brigitte, não te posso contar nada e peço-te que guardes segredo pois ninguém iria entender o que se passou. Este é o Raphael, acho que precisa de comer, alimenta-o por favor e deita-o ao lado de katrina enquanto eu me vou lavar"
"Sim padre, eu não direi nada, conte com o meu silêncio"
O padre Miguel senta-se numa cadeira e entrega nos braços de Brigitte a criança. Levanta-se com dificuldade colocando a mão nos rins e fazendo cara de sofrimento. Nitidamente combalido, dirige-se a casa de banho. Abre a torneira da água quente que rapidamente embacia o espelho. Na humidade forma-se lentamente o rosto do Anjo Raphael.
"Não temas padre pois eu sou do bem, guerreiro dos céus mão de Deus na sua obra. A criança que tens nesta casa que usa o meu nome é meu filho, protege-o de todo o mal pois o criador tem planos para ele. A menina e o meu filho nunca mais se devem cruzar, que esta seja a última vez que os seus olhares se tocam para bem da humanidade"
O rosto desenhado no vapor começa a dissipar-se deixando apenas o espelho embaciado. Miguel está abismado, limpa o espelho com a mão deixando os traços dos seus dedos marcados. Mergulha as mãos em água, lançando-a no rosto e pescoço. olha no espelho incrédulo com tudo o que se tinha passado esta noite. Seca o rosto, marcado com cicatrizes profundas, com uma toalha branca encostando-a no rosto com suavidade. A marca de uma mão com três dedos fica desenhada a sangue na toalha. Em frente a cama, onde tinha dormido calmamente todas as outras noites desde que tinha sido destacado para esta paróquia, olha com apreensão as duas crianças recém nascidas que dormiam profundamente, com as suas pequenas mãos entrelaçadas. O futuro destes inocentes inquietava os pensamentos do padre. Voltou costas deixando o assunto para ser resolvido ao nascer do dia. Ajoelhou-se diante do crucifixo de Jesus, entrelaçou os dedos e baixando o rosto pediu a Deus como poucos teriam a coragem de pedir:
"Senhor, faz de mim o braço da tua vontade e trata-me amanhã da mesma forma que tratei os outros hoje"
Benzeu-se, levantou-se como se o peso do mundo estivesse sobre os seus ombros, agarrou-se a um móvel e sentou-se num sofá em frente á cama onde os dois seres tão desejados pelo mal dormiam o sono dos puros. Fechou os olhos e deixou-se adormecer vencido pelo cansaço.